Pesca improdutiva
Espremida pela maciça ocupação industrial da região, a comunidade de Sítio Conceiçãozinha tem hoje apenas 300 metros de abertura para as águas do estuário. Dali, a paisagem predominante é a das máquinas dos terminais portuários do canal de Santos. Porém, mais desolada é a vista das palafitas erguidas sobre o mangue. "Isto aqui era um sítio. Havia banana, mexerica. Hoje, é uma favela", diz, desconsolado, Ilson Vaz, morador local há 45 anos. Como muitos ali, trabalha como estivador, no terminal da Cosipa. Outros tantos vivem unicamente da pesca, atividade com a qual sustentam suas famílias. Direta ou indiretamente, pescadores e estivadores dependem das águas do estuário.
Essa é a situação da comunidade, estabelecida nessa área há mais de cem anos. De uma forma ou de outra, depende do emprego gerado pelas mesmas indústrias que degradam seus meios de subsistência. O Sítio Conceiçãozinha situa-se próximo à foz do rio Santo Amaro, que recebe poluentes da Dow Química. As amostras de sedimento do local apresentaram contaminação por vários metais pesados, além de BHC e PAHs. Um requerimento exigiu o posicionamento da empresa quanto aos dados apontados pelo relatório da Cetesb e a denúncias das organizações não-governamentais (ONGs) Greenpeace e Coletivo Alternativa Verde (Cave), que motivaram, em 1998, uma representação contra a Dow no Ministério Público Federal.
O relatório da Cetesb sobre as condições de contaminação do estuário e dos rios que nele desembocam só comprova o que populações como a do Sítio Conceiçãozinha experimentam no cotidiano. "Quando se pergunta a qualquer pescador dessas áreas, todos têm uma só opinião: a poluição acabou com o pescado", afirma Valton Bezerra, da União de Pescadores de Conceiçãozinha. Com isso, os cerca de 230 pescadores da comunidade precisam cada vez mais se afastar da costa, em direção ao alto-mar, em busca da antiga produção. Mesmo assim, a poluição já atingiu o Farol da Moela e a Laje de Santos. Segundo Newton Rafael, morador de Conceiçãozinha desde que nasceu, há 51 anos, os siris e os camarões praticamente desapareceram. "Com certeza por causa da poluição química das indústrias", diz ele.
Não bastasse a escassez, o consumo de peixes e frutos do mar também tem diminuído devido à possibilidade de contaminação. "Eu mesmo só como pescado de fora do estuário", confessa Ilson Vaz. E tudo isso acabou por trazer mais dificuldades aos pescadores, muitos dos quais, segundo Newton Rafael, foram obrigados a penhorar seus barcos.
Não se pode desprezar a ação industrial como a principal interferência nesse processo. A Dow Química alegou que o estudo da Cetesb "não permite identificar de maneira conclusiva, nesta fase, a efetiva origem dos agentes poluidores encontrados em todo o estuário". Esse dado é contestado pela gerente da divisão de análises hidrobiológicas da Cetesb, Marta Lamparelli. "Houve associação entre fontes e poluentes nos casos da Dow e da Cosipa", afirma ela. Outra grande responsável pela contaminação do sistema estuarino da região, a Cosipa, nem mesmo se manifestou sobre o assunto.
O fato indiscutível é que o estuário e os rios da região encontram-se profundamente degradados. "A carga remanescente é alta o suficiente para manter a taxa de contaminação elevada", afirma o médico Eládio Santos Filho. Em vez de apontar culpados, a única iniciativa possível para a reversão do quadro é as indústrias assumirem o problema como global e investirem conjuntamente na recuperação ambiental, e não apenas no controle das emissões.
Questão de saúde
Aziz Nacib Ab’Sáber, geógrafo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), mantém-se cético sobre a recuperação da região. "Acabar com o problema é impossível", diz ele. "No caso de Conceiçãozinha, somando-se o número crescente de pessoas, o descaso do governo e o espaço estagnado do mangue, anuncia-se uma grande tragédia humana", completa o professor.
Para Newton Rafael, "quem perde o meio de subsistência, perde a dignidade". Essa frase sintetiza a situação dos moradores daquela comunidade e de outras que dependem da pesca e da coleta de animais na área do estuário e nos rios da região. À Cetesb cabe, em curto prazo, fiscalizar as empresas e estabelecer parâmetros restritivos à emissão de poluentes, através de mais estudos. "Estamos instalando sistemas de monitoramento contínuo nas indústrias e dando prosseguimento às avaliações da região", afirma Jorge Moya.
Outro órgão governamental envolvido, o Ministério Público, deve zelar para que os crimes ambientais cometidos na região não venham a se repetir. "Estamos efetuando investigações para a tomada de eventuais providências jurídicas", garante o procurador Antonio Daloia.
É escassa a legislação brasileira sobre saúde relacionada a os efeitos da poluição. A própria resolução 20 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), datada de 1986, que serviu de referência para muitos dos parâmetros adotados no estudo da Cetesb, não é suficiente diante dos efeitos da contaminação industrial.
Diante disso, torna-se urgente a elaboração da avaliação de risco recomendada pela Cetesb aos órgãos de saúde. Devem integrar o trabalho estudos sobre os hábitos alimentares das comunidades e exames que verifiquem a contaminação a que foram submetidas essas populações, especialmente através da ingestão de organismos afetados. "A via de ingestão é realmente preocupante", sustenta Marta Lamparelli. Por essa razão, está sendo constituído um grupo de trabalho formado pela Cetesb, pelo Centro de Vigilância Sanitária (CVS) e pelo Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE). "É um caso complexo, ainda mais por se tratar de uma área metropolitana", diz o diretor de Meio Ambiente do CVS, Sérgio Valentim. "Nosso objetivo é proceder à caracterização das fontes poluidoras e das populações para definir que iniciativas podem ser adotada
s em benefício da saúde pública", complementa.
Enquanto isso, os pescadores e suas famílias continuam convivendo com a poluição e seus efeitos, à espera de soluções que, neste caso, dependem não só do poder público, mas principalmente "da boa vontade" de grandes grupos industriais.